sabes? eu podia ter sido mais. podia ter sido chuva de ouro em pleno verão. podia ter sido calor com cheiro a amora em pleno inverno. podia ter sido um bocado de luz a caminhar por uma estrada escura. podia ter sido uma flecha lançada, acertando no destino de alguém. podia ter construído máquinas que permitissem mudar o interior das pessoas. podia ter cantado notas dissonantes e desafinadas dentro de água. podia ter desenhado no ar frio do anoitecer. podia ter criado laços sem textura na tua mente. podia ter inventado palavras suficientes para descrever a minha vida. podia ter escrito todos os pensamentos, sonhos, pesadelos, desesperos, lágrimas, gritos, suspiros, soluços, quedas, luzes, bater de asas, teclas de piano, tectos negros, chãos derramados, sangues vertidos, vómitos na parede, janelas por quebrar, lareiras a arder, casas a fechar, portões por saltar, luas por ver, plantas por inventar, sóis por desvendar. podia ter escrito tudo isso. podia ter escrito muito do que os lá de fora não sabem sobre mim. podia ter falado sobre os cortes, sobre as ideias, sobre a faca, sobre as paredes a aproximarem-se, sobre os gritos na almofada, sobre as noites sem dormir, sobre as alucinações, sobre o teu cheiro em mim, sobre o irreal em que me havia tornado. podia ter escrito sobre todas as mentiras que contei e conto, sobre os sorrisos, as gargalhadas, os olhares iluminados, as piadas, as ternuras, o carinho, a amizade, o amor. o amor. sobre o amor. podia ter escrito sobre o amor. sobre o pedaço irreal que carrego. sobre esse fragmento meu por onde navego, nua. podia ter escrito sobre essa pequena partícula que flutua no vácuo em que a minha vida se tornou. podia ter escrito sobre a vida, sobre o orgulho dos meus pais, sobre as notas brilhantes, sobre a vontade de aprender, sobre as vitórias, os planos bem sucedidos, a responsabilidade, a dignidade, a honra. podia ter escrito sobre tudo isso. podia ter sido alguém, apenas. apenas alguém. tudo o que sempre quis ser foi alguém, apenas, alguém, alguém, alguém, apenas, apenas, apenas, só. só. sozinha. não alguém. ninguém. mas sozinha. só. apenas, alguém, só, sozinha, mas ninguém.
enlouqueci nos pedaços que sobraram de ti, na tal partícula que ainda flutua, sem qualquer tipo de combustível ou de força para a carregar. acabou-se o combustível, acabaram-se as forças. porque ainda flutuas tu, amor? porque ainda és sequer uma partícula? porque és um fragmento meu por onde navego nua? porque és um pedaço irreal que teimo em carregar? partícula, fragmento, pedaço. partícula, fragmento pedaço. partícula, fragmento, pedaço.
é um jogo. o jogo. podia ter escrito sobre este, também. sobre o jogo que criaste. desde o início, procuraste uma entrada em mim. achaste-a, facilmente. entraste, abusaste, dominaste, controlaste, condicionaste, esvaziaste-te, espalhaste-te por todo o lado, cravando bem o teu cheiro com as unhas, derramando do teu próprio sangue para dentro de mim, lambendo cada pedaço da minha pele. encheste-me tanto de ti que acabei por morrer. morri e renasci em ti. deixei de ser eu, levaste-me, pedaço por pedaço, fragmento por fragmento, partícula por partícula. levaste tudo isto que era meu. e deixaste tudo o que era teu. e agora sou eu. eu sou tu, agora. depois, era a minha vez de jogar. queria encontrar uma saída de ti. amava-te demais, demasiado. tinha medo das consequências. tinha medo da satisfação que sentia sempre que me carregavas de ti, sempre que saltavas para dentro de mim, sempre que mexias e remexias e levavas e deixavas, dentro da minha alma. que agora é a tua. queria encontrar uma saída, pois sabia que acabarias por me possuir por completo. não consegui. no dado, não apareceu o número que esperava. o número que era o meu bilhete para a liberdade, para o objectivo, para a saída de ti. então, riste-te, cruel, ignóbil, sedento por sangue, e continuaste a jogar. eras sempre tu a jogar. sempre a tua vez. no dado, sempre os números que esperavas. cruel sorte, doce azar. jogaste sem cessar e eu fui-me deixando levar, pelos teus dedos, pela tua língua, pelo teu cheiro, pelos teus ombros, pelos teus braços, pelo teu pescoço, pelos teus olhos. cada toque queimava na minha pele. cada sussurro teu era ensurdecedor. cada beijo teu era uma lâmina, afiada, fina, pronta a cortar a minha língua. e cada olhar teu... olhar, teu, cada... cada olhar teu quebrava-me mais um pouco. e foi o teu olhar que acabou por ser a minha droga. quando sucumbi por completo, a favor do teu olhar predador e sensual. o teu olhar cor de âmbar, o teu olhar que brilhava no nosso quarto escuro e frio. o teu olhar que brilhava sempre. sempre sedento de sangue, sempre a brilhar. foi aí que caí em ti, foi aí que me dei toda a ti. eu queria ser tu. já queria que me desses toda a tua alma. queria livrar-me da minha e ser toda tu. sim, tu e o teu olhar misericordioso! queria a tua alma, só para mim, não queria que ficasses com nada teu, queria tudo teu para mim! finalmente, foi a minha vez de jogar.
maldição.
agora que era a minha vez de jogar, era a tua vez de sair. saíste. sem te despedires. como se não houvesse nada nem ninguém a quem dizer adeus. um último adeus, ainda o espero. encontraste uma saída de mim enquanto eu cavava a minha entrada em ti. é como uma droga. agora que estava viciada, havias-me abandonado. sem dizer nada. qualquer tipo de palavra. sem dizer adeus a ninguém. como se não houvesse alguém a quem dizer adeus. talvez o não houvesse. até tu o sabias. tu que eras completamente louco por mim, apaixonadamente louco. sabias que eu não era alguém. sabias que eu era ninguém. porque não me avisaste no que me iria tornar?
durante anos, cavei a entrada em ti, embora já lá não tivesses, embora não fosses mais real. eras uma lembrança falsa, uma realidade perdida no tempo e no espaço, uma imagem irreflectida no espelho do nosso quarto. a cama ainda está por fazer, o teu cheiro ainda descansa nos lençóis suados, os teus livros científicos estão abertos em cima da mesa, por ler. onde foste tu? porque deixaste tudo isto para atrás? porque não levaste tudo contigo? se tivesses levado, saberia que estava verdadeiramente louca. saberia que nunca havias existido, que fora tudo obra da minha mente perversa. mas não. deixaste tudo. objectos, factos, meros factos que fazem toda a diferença. porque assim não sei se realmente foste real. foste-te tu, mas deixaste as tuas partículas, fragmentos, pedaços. não sei o que é real ou irreal. nunca mais o soube. não sei se inventei a tua voz, o teu jeito engraçado, o teu cabelo ondulado, o teu corpo firme, o teu cheiro doce que te descreve perfeitamente, os teus olhos âmbar como nunca eu tinha visto antes de ti., antes do teu infindável capítulo na minha vida. não sei se inventei todo aquele jogo egoísta e viciante. não sei se inventei todos os bocados da tua alma que enviaste para dentro da minha. é triste. é deveras triste. a tristeza é real. o resto, não sei. não sei sequer se eu sou real.
ainda hoje recordo quando me disseste amo-te, cara a cara. sem medo, sem receio. nunca ninguém me tinha dito aquela palavra. um som articulado assustadoramente como amo-te. tinha medo daquela palavra, ainda tenho. sou incapaz de a dizer. os meus lábios não se movem, a minha língua retesa-se. mas quando tu mo disseste, o mundo parou. foi como se tivesses inventado uma palavra para descrever o que sentias por mim, para alimentares mais este meu vício insaciável de ti. foi como se nunca tivesse ouvido aquela palavra antes. como se não soubesse da sua existência. como se a tivesses inventado, só para mim. como se o meu nome estivesse por trás das suas letras, algures.
sei que estás vivo, algures neste mundo duvidoso. quiçá voltarei a ver-te. no céu ou no inferno, voltarei a ver-te. sei que não vou para o céu nem para lado nenhum, pois, se o karma realmente existe, ainda cá ficarei inúmeras próximas vidas. e, quando já não me reconheceres, quando voltares a este mundo para procurares aquela que te amou inevitavelmente e contra a sua vontade, saberás o que deixaste para trás. saberás que não me deverias ter dispensado assim, sem te despedires. como se eu fosse uma boneca que utilizas e deitas fora porque vai ficando rota e com pó. era mais do que essa simples boneca, mas parece que conseguiste realmente tornar-me nela, rota e com pó.
e, graças à minha mente cheia de ti, não resta espaço para recordar o toque, o cheiro e a voz da minha Mãe. como te odeio, mas não consigo deixar de te amar. és o meu vício, a minha droga. tudo o que quiseste que eu fosse, sou-o agora. porque não voltas? eis o que querias, eis no que me tornei. volta e preenche um dos dois buracos negros dentro de mim. encheste-me toda de ti e então escondo-me no medo, na tristeza. escondo-me das crianças. incapacitaste-me de recordar o meu passado, e só te consigo recordar a ti. não me quero mostrar. não há nada bonito para se ver.
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